2.2 Princípios específicos - Os
arts. 95 e 96 do Estatuto da Terra impuseram como de caráter obrigatório os
comandos descritos em seus incisos, denominando-os de princípios. Como
princípios foram colocados para que fossem obedecidos na edição do regulamento.
De fato deu organicidade ao tema, derivando o Decreto 59.566/66. Contudo ao se
referir às relações intersubjetivas, como está posto nos artigos supra, na
verdade devem ser reconhecidos como diretrizes fundamentais na elaboração e
execução dos contratos agrários, uma vez que deles não há como se extrair
tão-somente abstrações gerais, como ocorre na maioria dos princípios
norteadores do direito, sejam eles gerais ou específicos. É por isso que não
podemos desprezar outras posições que os consideram apenas como regras
materiais ou substantivas, imperativas/cogentes, de aplicação obrigatórias.
2.3 Relativamente à interpretação
dos contratos agrários e aplicação das regras jurídicas de plano cabe notar
a dificuldade quando estes princípios de ordem privada tais como a vontade ou
liberdade das partes, entram em aparente conflito, afrontando prescrições de
ordem pública, como as leis agrárias especiais, que nesta obra investigamos.
No campo da hermenêutica o assunto tem
dado trabalho aos pesquisadores. Carlos Maximiliano[1]
assim conduz o tema, vejamos: “A distinção entre prescrições de ordem
pública e de ordem privada consiste no seguinte: entre as primeiras o interesse
da sociedade coletivamente considerada sobreleva a tudo, a tutela do mesmo
constitui o fim principal do preceito obrigatório; é evidente que apenas de
modo indireto a norma aproveita aos cidadãos isolados, porque se inspira antes
no bem da comunidade do que no indivíduo; e quando o preceito é de ordem
privada sucede o contrário: só indiretamente serve o interesse público, à
sociedade considerada em seu conjunto; a proteção do direito do indivíduo
constitui o objetivo primordial. Os limites de uma e outra espécie têm algo de
impreciso.”.
2.4 Desse modo e antes de tudo, devemos
sempre ter em mente os comandos normativos que já conhecemos desde os tempos de
iniciação acadêmica. Falamos, é claro, daqueles que basicamente inserem no
texto legal a função de: ordenar, proibir, permitir, punir, surgindo daí
a tradicional classificação das leis em imperativas, proibitivas, permissivas
e punitivas.
2.5 As normas reguladoras dos contratos
agrários devem ser atentamente examinadas, uma vez que podem se revestir de
mais que um dos comandos acima, predominando a função imperativa. É com esse
cuidado que devemos operar os instrumentos contratuais no mundo fático das
relações agrárias.
2.6 No tocante aos processos ou métodos
de interpretação da lei, propriamente dito, relativo ao sentido e alcance da
norma onde temos como exemplo o método gramatical, lógico, sistemático,
teleológico, histórico etc., em parte abstraímos deste estudo por entendermos
não ser o objeto principal. Nesse campo existe uma infinidade de manuais que
poderão ser consultados com facilidade. Contudo não podemos afastar a assertiva
de que os contratos agrários que não atenderem o padrão normativo devem ser
interpretados levando-se em consideração os fatores sociais que
circundam a vida campesina de onde derivou o pacto, como modalidade de
interpretação plenamente aceita.
Por outro lado, nos contratos de
relações formais, também não poderíamos deixar de colocar, como dito
anteriormente, a possibilidade da existência de conflito aparente de normas
incidentes sobre determinadas questões que se tornam ou se tornaram
controvertidas entre as partes. Nesse passo temos matéria exaustivamente
abordada na obra Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bóbbio[2],
quando em determinado momento de seu estudo sugere regras para a solução de
antinomias: “As regras fundamentais para a solução das antinomias são três:
a) critério cronológico; b) o critério hierárquico; o critério da especialidade”.
De posse dessa assertiva, o operador do
direito ao se defrontar com mais de uma norma para a solução do caso,
certamente irá submetê-las as regras supra, caso haja aparente conflito.
Ainda no dizer de Bobbio[3]
"Todas as fases de um ordenamento
são, ao mesmo tempo, executivas e produtivas. (...) O grau mais alto é
constituído pela norma fundamental: essa é somente produtiva e não executiva.
(...) Esse duplo processo ascendente e descendente pode ser esclarecido também
em duas outras noções características da linguagem jurídica: poder e dever.
Enquanto a produção jurídica é a expressão de um poder (originário ou
derivado), a execução revela o cumprimento de um dever."
Com esse ensinamento o pensador colocou de forma
clara o critério da hierarquia da norma, especialmente a questão da
constitucionalidade freqüentemente levada ao judiciário, onde a norma ordinária
poderá conflitar com a Constituição Federal, provocando o conflito hierárquico.
Tal preocupação
tem razão de ser, ocorre que, compulsando a Constituição Federal em seu
Capítulo III que dispõe “Da Política Agrária e Fundiária e Da Reforma Agrária”,
observamos que o Estatuto da Terra foi recepcionado formal e materialmente como
lei ordinária. É correto afirmar isso, uma vez que a única ordenação formal de
produção legislativa com quorum qualificado determinada pelo Legislador
Constituinte, refere-se à edição de Lei Complementar e diz respeito apenas ao
processo judicial de desapropriação, § 3º do art. 186 da Constituição Federal
de 1988. Em relação aos demais temas agrários a lei ordinária atende ao comando
Constitucional para regulamentar a Lei Maior.
Portanto, no que concerne ao critério da hierarquia das normas, o
Estatuto da Terra está caracterizado como lei ordinária, porém especializado
em relação às matérias autorizadas ou não proibidas pela Constituição
Federal. Essa visão se faz necessária, uma vez que, em certos assuntos,
leis ordinárias anteriores ao texto Constitucional adquiriram com sua
promulgação o status de lei complementar, já em relação ao
Estatuto da Terra isso não se faz necessário porque a CRFB assim não exigiu.
Dando prosseguimento ao tema relacionado à
hierarquia das leis, sabemos que quando da ocorrência de antinomia entre dois dispositivos, em tese de mesma
hierarquia, outra solução poderá ser adotada, ou seja, a que consiste na
aplicação do Princípio da Especialidade. A ilustre jurista MARIA HELENA DINIZ[4],
ensina nos seus estudos referentes aos critérios para a solução dos conflitos
de normas (Obra: Conflito de Normas, pág. 33, 5. ed - São Paulo: Saraiva,
2003), "verbis":
" Se, como nos ensina Hans Kelsen, para haver
conflito normativo as duas normas devem ser válidas, pois se uma delas não for,
não haverá qualquer antinomia, já que uma das normas não existiria
juridicamente."
Diz ainda a ilustre doutrinadora:
" C) O de especialidade (lex
specialis derogat legi generali), que visa a consideração da matéria normada,
com o recurso aos meios interpretativos. Entre a lex specialis e a lex
generalis há um quid specie ou uma gens au speci. Uma norma é especial se
possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais
alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes
"
Continuando com Maria Helena Diniz na
sua já citada obra, agora em pág 50, no título Antinomias de segundo grau e os
metacritérios para a sua resolução, assim propõe:
" Ter-se – á antinomia de
antinomias, ou seja, antinomia de segundo grau, quando houver conflito entre os
critérios:
................
b)
especialidade e cronológico, se houver uma norma anteriormente especial
conflitante com uma posterior-geral; seria a primeira preferida pelo critério
de especialidade e a segunda, pelo critério cronológico,.........."
2.7 - Dualismo
“Direito e Estado” e a legitimidade da vinculação dos Contratos Agrários ao
Direito Positivo
Ainda que
não estejamos apregoando nem desmerecendo as regras de direito formal e
material, é salutar incutir que o direito no Juspositivismo também
consiste na limitação do Estado pelo Direito, e tem a lei como seu ápice. É com
esse pressuposto que as relações contratuais no direito agrário deverão ser
tratadas, uma vez que são densamente regulamentados pelas regras positivas
inseridas no sistema jurídico que por sua vez decorre do atual Estado
Democrático de Direito, situação que o Brasil procura preservar como conquista
da nação.
2.8 Assim,
para que tenhamos compreensão do assunto (contratos agrários) que se encontra
cercado por um conjunto de normas, o Estado deve ser conhecido posto ser o
principal agente produtor delas. As buscas da definição do Estado e sua relação
com o Direito são incessantes. Vale ressaltar as principais colocações teóricas
seguidas pelos pensadores.
A respeito
do que seja Estado e Direito acentua BASTOS[5]
com síntese e maestria: “O Estado e o Direito. O Direito precede ao
Estado, doutrina o jusnaturalismo; Direito e Estado se confundem, assevera o
positivismo jurídico.”
Consoante
Afonso Arinos[6] :
"O
Jusnaturalismo aceita a supremacia básica do direito sobre o Estado, na questão
dos direitos do homem. O juspositivista afirma a supremacia do Estado sobre o
direito, (...) Não podemos deixar de
observar, no entanto, que a teoria da autolimitação do Estado, exatamente por
não reconhecer a precedência, sobre seu poder, de algumas condições específicas
da personalidade humana, oferece menos segurança de estabilidade das liberdades
individuais do que as teorias jurídicas ou metajurídicas, que afirmam a
limitação do Estado pelo Direito."
2.9 A preocupação deste relato doutrinário
reside em justificar ou submeter o Estado aos desígnios do direito, objetivando
a segurança e estabilidade das liberdades individuais e coletivas através do
direito legislado, culminando, por ato decorrente, em justificar também as
regras incidentes sobre os Contratos Agrários.
Por isso
questionamos: qual o Estado que melhor atenderia esses ideais?
Sem dúvidas
recorre-se aos ensinamentos de BOBBIO[7]
em sua definição procedimental de Democracia, que segundo ele, é possível
relatar que definiu o estado democrático como o conjunto de regras de
procedimentos para a formação de decisões coletivas em que está prevista e
facilitada a participação mais ampla possível dos interessados - são regras
jurídicas.
Quanto ao
direito e poder, diz ele que só o direito pode limitar o poder e só o poder
pode criar o direito. Então quanto às regras de procedimentos pode se afirmar à
assertiva de que só o autorizado pode tomar as decisões coletivas. E essa
autorização é decorrente do próprio direito.
Segundo
BOBBIO[8]
: "O modelo ideal entre direito e poder é o Estado democrático de direito,
isto é, o Estado no qual não há poder que não esteja submetido a normas que
derivem do consenso ativo dos cidadãos".
Tem-se
aqui que um Estado de Direito com a pretensão de dar segurança ao cidadão, deve
ser democrático quanto à sua forma de governo no que se refere às atividades
típicas de Estado, isso é, a execução, legislação e justiça, tendo como
premissa o poder centrado no povo, este como detentor primário e originário do
poder, onde se auto-ordena na produção do sistema jurídico. É o povo fazendo as
regras jurídicas diretamente ou por meio de seus representantes periódicos,
embora estes sejam meros fiduciários.
Retomando
os dizeres de BOBBIO[9]
pode se concluir que o mandatário é um fiduciário e não um delegado do eleitor,
pois representam os interesses gerais, políticos.
2.10 Os contratos agrários são exaustivamente regrados por
dispositivos legais, de modo que ao operador do direito resta o dever de estar
sempre atento, ao iniciar seu contacto com o tema, à visão positivista do
direito no sentido de obedecer em especial à hierarquia das normas, partindo da
Constituição Federal até chegar ao instrumento individual que é o contrato,
para que as normas de ordem pública, como no caso a Lei 4.504/66 e Decreto
59.566/66, não sejam renegadas.
Para KELSEN[10],
um expoente do positivismo jurídico, a Constituição efetivamente erradia uma
unidade na pluralidade das demais normas: "Como a norma fundamental é o
fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem
jurídica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas.".
Disse Kelsen
que a norma é desprovida de valor, distinguindo o mundo do “ser” e “dever ser”,
no mundo do ser estão os fatos com suas mais variadas conotações.
Nessa linha
de pensamento podemos afirmar que as questões relativas aos “valores” devem ser
apreciadas pelos legisladores na elaboração da norma e vistos com muita
restrição pelos operadores do direito na execução da norma.
Por esse
motivo o operador do direito deve ter em mente num primeiro momento a norma
como padrão de conduta, uma vez que no mundo dos negócios os contratos agrários
freqüentemente podem levar o profissional do direito ao senso comum (enquanto
cotidiano dos leigos), elaborando contratos sem o cuidado mínimo necessário
pelo simples apego ao caso ou paixão à causa (valores cultuados no meio
social), em que pese à relevância dos fatores sociais nas relações do meio
rural.
Os
Contratos Agrários obedecem a normas obrigatórias e imperativas, tendo em vista
o interesse coletivo, daí porque o interprete deve levar em conta os “fatores
sociais” sempre que não for possível aplicar a norma ou quando ela
apresentar lacunas que não possam dar solução adequada ao pacto. Jamais se
esquecendo da função social da propriedade consagrada na Constituição Federal a
partir de 05 de outubro de 1988.
Resgatando
Aristóteles, a Lei é a razão liberta da paixão.
[1] Carlos Maximiliano. Hermenêutica
e Aplicação do Direito. RJ: Forense,
2003, p.176.
[2] Norberto Bobbio. Teoria do
Ordenamento jurídico. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 10ª Ed., 1997. p.92.
[5]
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 8.
[6] FRANCO, Afonso Arinos de
Melo. Direito Constitucional (teoria da Constituição; as Constituições do
Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p.27.
[7]
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia;
uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio; tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.18-21.
[8] Fonte: DIÁRIO CATARINENSE -
domingo 04 de outubro de 1998, p.3.
[9] BOBBIO, Norberto. O Futuro da
Democracia: uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio; tradução de Marco
Aurélio Nogueira. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986. p.46-47.
[10] KELSEN, Hans. Teoria
pura do direito.
Trad. João Baptista Machado. São Paulo,
Martins Fontes, 1987. p. 220.
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