sábado, 16 de abril de 2016

CAPITULO IV - Definição, características, requisitos dos Contratos Agrários

Definição, características, requisitos dos Contratos Agrários


1. O conceito normativo do que seja contrato agrário vem definido no art, 1º do Decreto 59.566/66:
“Art 1º O arrendamento e a parceria são contratos agrários que a lei reconhece, para o fim de posse ou uso temporário da terra, entre o proprietário, quem detenha a posse ou tenha a livre administração de um imóvel rural, e aquele que nela exerça qualquer atividade agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa ou mista (art. 92 da Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964 - Estatuto da Terra - e art. 13 da Lei nº 4.947 de 6 de abril de 1966).”

Portanto, para caracterização do contrato agrário é necessário que se faça realizar entre o proprietário, detentor ou quem tenha a livre administração de um imóvel rural e a pessoa que nele vai exercer atividade agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista.

2.Requisitos objetivo, subjetivo e de forma

 Mas para que tenhamos o contrato agrário não basta a qualidade da pessoa e característica do bem. Sobressaem outros requisitos tais como os inerentes ao objeto, que seja válido, a prudente observação quanto à capacidade jurídica dos contraentes, a licitude do objeto do contrato, a forma se permitida ou não proibida entre outros requisitos, que veremos adiante.


3. Natureza  dos Contratos Agrários

Em linhas gerais os contratos agrários são de natureza:

-Bilateral com direitos a obrigações recíprocas;
-Consensual deve haver mútuo consentimento de conformidade com os ditames legais;
-Oneroso, uma vez que os participantes objetivam vantagens e sacrifícios recíprocos para sua consecução;
-Aleatório (porém no futuro plenamente determinável), especialmente no que se refere à parceria, posto que a vantagem esperada depende de fatores externos ao pacto. Todavia, no contrato de arrendamento a prestação poderá estar quantificada em valores independentes do sucesso do empreendimento contratado, tendo caráter comutativo;
-Não solene: a lei e o regulamento possibilitam que sejam celebrados de forma escrita ou oral;
-Intuitu personae [1]( art. 13 da Lei 4.947, V) - celebrado em função da pessoa do contratante, é o chamado cultivo direto e pessoal ainda que pelos seus familiares. Observe-se que o conceito dessa modalidade vem estabelecido no art. 13 da Lei 4.947, V, “em nota de rodapé”, em que limita o conceito de cultivo direto e pessoal quando cultivador não utilize assalariados em quantia superior aos membros ativos do conjunto familiar.

Sob o enfoque do parágrafo único do art. 2º do Decreto nº 59.566/66, os contratos sofrem a incidência normativa, sob pena de nulidade em caso de descumprimento das regras legais regedoras do pacto. Vejamos:

“Art 2º Todos os contratos agrários reger-se-ão pelas normas do presente Regulamento, as quais serão de obrigatória aplicação em todo o território nacional e irrenunciáveis os direitos e vantagens nelas instituídos (art.13, inciso IV da Lei nº 4.947-66).
Parágrafo único. Qualquer estipulação contratual que contrarie as normas estabelecidas neste artigo, será nula de pleno direito e de nenhum efeito.”

Temos que a natureza e linhas gerais dos contratos agrários apontam para serem: bilateral, consensual, oneroso, aleatório na parceria e comutativo no arrendamento, não solene e intuitu personae, cujos direitos são irrenunciáveis.

3.1 Natureza de Direito Real

 Outra questão reside em definir se o contrato de arrendamento, exceto o de parceria, tem natureza de direito real. Podemos afirmar que o contrato de arrendamento caracteriza-se diante do poder de uso e fruição do bem, apesar de predominar o caráter obrigacional, há uma estreita ligação com direito real.

Nesse sentido o estudo oferecido no site da Receita Federal[2], arrola elementos de fundamental importância para a distinção entre direito real e pessoal. Vejamos:
“I - O direito real tem as seguintes características:
a) é provido de ação real, que prevalece contra qualquer detentor da coisa, razão pela qual preferem muitos denominá-lo de absoluto;
b) oponibilidade erga omnes: no polo ativo da relação jurídica está o titular do direito real sobre determinado bem ou coisa; no polo passivo estão todas as pessoas da coletividade, indeterminadamente. A oponibilidade erga omnes, portanto, consiste no poder assegurado ao titular de um direito real de opor contra todas as pessoas da comunidade esse seu direito, devendo estas nada fazer, senão se abster ou tolerar;
c) aderência: ambulatoriedade e seqüela - pela aderência o direito se une à coisa de forma inseparável ou incindível, de sorte que se esta muda de lugar ou muda de detentor, o direito continua ligado a ela. Ora, se o direito também se movimenta sempre que a coisa se movimentar, deve-se concluir que o direito real é um direito ambulante, é um direito que se movimenta. Ambulatoriedade é, precisamente, essa capacidade que tem o direito real de se movimentar. Seqüela significa o poder conferido ao titular de um direito real de perseguir a coisa, tomar e trazê-la de volta;
d) taxatividade (tipologia numerus clausus) – o nº de direitos reais é taxativo, vale dizer, numerus clausus. Isso significa que os direitos reais têm um modelo definido pela própria lei que os cria (tipicidade) e um nome (nominatividade), não podendo as partes criar nenhum outro;
e) normas cogentes (de interesse público, inderrogáveis pelas partes), ou seja, de observância obrigatória;
f) posse – somente os direitos reais são suscetíveis de posse;
g) perenidade.
II - O direito obrigacional ou pessoal tem as seguintes características:
a) direito relativo – só vincula juridicamente as partes contraentes. No polo ativo, está o credor da obrigação; no polo passivo, está o devedor da obrigação, cujo objeto é uma prestação positiva ou negativa (dar, fazer ou não fazer);
b) tipologia numerus apertus, ou seja, a tipologia é livre, desde que se respeite o seguinte: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei;
c) normas dispositivas (de livre fixação pelas partes contraentes);
d) transitoriedade.”


Em que pese à conclusão do fisco ter se inclinado no sentido de caracterizar esses instrumentos como  relação de natureza jurídica obrigacional ou pessoal, posto afirmar que os direito reais são numerus clausus entendemos ser salutar que a caracterização, em ser real ou pessoal, deva  passar necessariamente pela  análise, caso a caso, em face dos requisitos supra apontados.

Tal caracterização, se de natureza real e não puramente obrigacional ou pessoal, entre outras utilidades, poderá legitimar o contratado arrendatário nas ações contra terceiros na defesa do bem imóvel, mesmo sem o consentimento do proprietário arrendador. Logicamente desde que o contrato obedeça ao padrão normativo bem como levado ao registro competente.


4. - Delimitação Normativa dos Contratos Agrários

Ao comentar sobre Parceria e Arrendamento Rural em sua obra Contratos, Arnaldo Rizzardo[3]  aduz que “Embora fosse o Brasil ao tempo da aprovação do Código Civil de 1916 predominantemente rural, poucos eram os dispositivos reservados a questões rurais, sobressaindo o caráter de uma legislação eminentemente urbana. Tratou de um único contrato agrícola, que foi a parceria. Seus dispositivos tinham função apenas supletiva, pois tanto a parceria como o arrendamento vinham disciplinados por leis próprias, como a Lei nº 4.504, de 30.11.1964 (Estatuto da Terra) e o Decreto nº 59.566 de 14.11.1966. O Código de 2002 não trouxe qualquer regulamentação da matéria, ficando sua disciplina reservada à lei especial.”

Em similar entendimento, na sua obra editada no ano de 1978, se manifesta Caio Mário da Silva Pereira[4]: “As disposições do Código Civil a respeito, demasiadamente individualista, desatualizaram-se. Haverá mister a criação de um melhor critério de amparo quando se elaborar o estatuto da terra.”.
                                  
4.1 Dentro de um determinado micro sistema legislativo como ao que nos propomos a analisar, devemos levar em conta o fato de que a primeira grande norma a dar suporte as demais regras é a Constituição Federal. Em vários dispositivos entre eles o da garantia à propriedade e de sua função social (art. 5º, Inc. XXII e XXIII)[5] do aproveitamento e da utilização, art. 186[6], ela fixa diretrizes e princípios em prol dos proprietários e dos trabalhadores dando suporte ao estatuto da terra e as demais regras complementares e especializadas.

No campo específico o diploma basilar é o Estatuto da Terra Lei 4.504/66, em seu capítulo IV, título I, surgindo em seguida a Lei 4.947/66 (arts. 13 a 15 - CAPÍTULO III - Dos Contratos Agrários) como normas complementares e por sua vez o Decreto 59.566/66 regulamentando com maiores detalhes os contratos agrários.

O Código Civil de 1916 tratava o tema de modo tímido em seus artigos 1.410 a 1.423 dando ênfase à parceria, por sua vez extensiva ao arrendamento. Já o atual cedeu lugar de vez à legislação especial aqui tratada.

4.2 Toda a temática que envolve os Contratos Agrários não se resume tão somente na questão legislativa, seja ela avulsa ou codificada. Existe pelo menos um princípio que deve ser seguido. Nesse diapasão, vale aqui observar a questão da Função Social da Propriedade, por se tratar de princípio norteador do ordenamento jurídico. Ele foi tratado com clareza no parecer elaborado por Joaquim Modesto Pinto Junior e Valdez Adriani Farias[7], quando efetua a seguinte conclusão:  “a) Deflui da ordem jurídica positivada que no conceito de função social está contido o conceito de produtividade, mas que no conceito de produtividade também estão contidas parcelas dos conceitos de função ambiental, função trabalhista e função bem estar, isto é, que a função social é continente e conteúdo da produtividade.”. Assim, a função social da propriedade erradia novos conceitos que não podem ser vistos apenas como um segmento, por exemplo, da produtividade.

Em torno da função social da propriedade como instituto ou princípio de Direito Público elevado aos patamares Constitucional, especialmente após a edição da Constituição Federal de 1988, é que se construiu e se acolheu todo um ordenamento jurídico específico direcionado aos contratos agrários. Doravante se preocupando mais com a condição social desfavorecida dos rurícolas (parceiro e arrendatário) desprovidos de propriedade, ao estabelecer normas em que contemplam regras cogentes e de observância obrigatória, bem como tem preocupação com outros assuntos, entre eles o do meio ambiente.

Descoberto que a origem principiológica do tema esta localizada na função social da propriedade, conclui-se então que o contorno legislativo sobre a matéria, sem desconsiderar as regras relativas ao meio ambiente, trabalhistas etc, encontra-se delineado no Estatuto da Terra Lei 4.504/64 e no seu regulamento Decreto 59.566/66. O código civil, anterior e atual, serviu e serve como fonte supletiva na omissão das aludidas normas especiais. Alias é o que reza o § 9º do art. 92 do ET no mesmo sentido o art. 88 do aludido Decreto Regulamentar:
“Lei 4.504/64
art. 92 ...
§ 9º Para solução dos casos omissos na presente Lei, prevalecerá o disposto no Código Civil.

Decreto 59.566/66:
 Art 88. No que forem omissas as Leis 4.504-64, 4.947-66 e o presente Regulamento, aplicar-se-ão as disposições do Código Civil, no que couber.”

O fato do novo Código Civil não dispor expressamente sobre contratos agrários não o afasta do cenário jurídico, aqui comentado, o certo é que as regras sobre capacidade, vontade, nulidade, e demais elementos, são conceitos dele extraídos. Já as cláusulas essenciais e necessárias que tipificam ou qualificam o objeto do contrato agrário, tanto as regulamentares[8] como financeiras são tratadas nas leis especiais aqui estudadas. Quando arroladas ou reconhecidas como obrigatórias elas são aplicadas ainda que não expressas, uma vez que implicitamente são reconhecidas como privilégios irrenunciáveis, consoante o já citado art. 2º do Decreto 59.566/66.





[1]              “art. 13, V da Lei 4947/66: V - proteção social e econômica aos arrendatários cultivadores diretos e pessoais. art. 8º do Decreto 59.566/66: Art 8º Para os fins do disposto no art. 13, inciso V, da Lei nº 4.947-66, entende-se por cultivo direto e pessoal, a exploração direta na qual o proprietário, ou arrendatário ou o parceiro, e seu conjunto familiar, residindo no imóvel e vivendo em mútua dependência, utilizam assalariados em número que não ultrapassa o número de membros ativos daquele conjunto.
                    Parágrafo único. Denomina-se cultivador direto e pessoal aquele que exerce atividade de exploração na forma deste artigo.

[3]              Rizzardo, Arnaldo.Contratos. 3ª ed. RJ Forense, 2004 p. 1059.
[4]              Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil. RJ. Forense, 1978.p.264
[5]    XXII - é garantido o direito de propriedade;XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

[6]    Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
      I - aproveitamento racional e adequado;
      II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
      III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
      IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

[7]              Joaquim Modesto Pinto Junior e Valdez Adriani Farias. Função Social da Propriedade – dimensões ambiental e trabalhista. Nead debate, p.48.
[8]              Segundo o conceito extraído do Atos da Comissão Diretora do Senado nº 24 de  1998, item  XI , assim conceitua “Cláusula regulamentar, aquela de conteúdo ordinatório, que trata da forma e do modo de execução do contrato;”

SINOPSE - III


Contratos Agrários - Especificidades

1. Elaboração dos Contratos – A linguagem do texto – linguagem comum ou natural e a linguagem técnica. (cuidado com exageros: expressões, jargões ex: destarte, data vênia, quiçá, in actu, in albis, vacância...). Vide citação de Warat neste capitulo.
2. A Estrutura Formal Básica do Instrumento – art. 12 Decreto 59.566/66 – delineia o formato, sugerindo ou determinando conteúdo. Possibilita a visibilidade, validade e eficácia. Minimiza conflitos no decorrer da execução.
3. Cláusulas Obrigatórias - art. 13 do Decreto 59.566/66, representam a dignidade da pessoa humana. Publicizou-se a relação, não mais só inter par, o Estado está presente e a Liberdade de contratar está limitada pela função social do contrato art. 421 CC.
3.1As cláusulas compromissórias de juízo arbitral - art. 852 CC , os contratos agrários não possuem o caráter estritamente patrimonial, não lhes sendo plenamente aplicáveis. 

3.1 As cláusulas compromissórias

O compromisso arbitral esteia-se na possibilidade das pessoas capazes de contratar poderem escolher um árbitro que possa resolver as pendências judiciais ou extrajudiciais, no que se refere aos direitos patrimoniais possíveis de transação.

 Em face do caráter público do direito que regulamenta os Contratos Agrários, concedendo privilégios irrenunciáveis aos parceiros e arrendatários, nos sinaliza com a convicção de que a aplicação do juízo arbitral sofre restrições.  Tanto é verdadeiro que o próprio Código Civil oferece limitações como na solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Vejamos:

”Art. 851. É admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que podem contratar.
Art. 852. É vedado compromisso para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial.
Art. 853. Admite-se nos contratos a cláusula compromissória, para resolver divergências mediante juízo arbitral, na forma estabelecida em lei especial.”


Os Contratos Agrários não possuem o caráter estritamente patrimonial, posto que assegurarem a proteção social e econômica do arrendatário ou parceiro, além do cuidado com os usos e costumes predatórios, entre outras objeções. Assim opinamos pelo não cabimento da inserção de cláusula compromissória do juízo arbitral nos Contratos Agrários, ou pelo menos temos restrições ao seu uso. Do mesmo modo aquelas cláusulas que objetivem excluir da apreciação do judiciário os conflitos decorrentes da relação criada. Contudo no anexo II onde consta as minutas de contratos, na “minuta ou modelo 5” fizemos constar cláusula de juízo arbitral em homenagem  aos que assim não pensam. 

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Contratos Agrários - Especificidades 1. Elaboração dos Contratos - A linguagem do Texto

1. Elaboração dos Contratos -  A linguagem do Texto

Ao profissional do direito ao ser consultado pelos interessados na  elaboração do pacto, sugere-se que oriente ou formule o instrumento contratual dentro da linguagem comum, mais acessível que puder. Sem perder de vista, é claro, a necessária linguagem técnica aplicável ao texto elaborado.

Justificamos! Em regra as partes envolvidas são pessoas com uma linguagem voltada ao meio rural e poderão não estar acostumadas com a técnica contratual direcionada ao meio urbano. Portanto, as sugestões de minutas em anexo ao presente trabalho pretendem ajudar na prática profissional, estando moldadas na simplicidade gramatical.

Nessa linha, cabe destacar a precisa distinção entre a linguagem técnica e a linguagem natural desenvolvida na obra de Warat[1] que ao discorrer sobre Tipos de Linguagem assim preceitua:
Elegendo como matriz os signos e os enunciados (26), o positivismo Lógico estabelece uma tipologia das linguagens, classificando-as em: naturais ou ordinárias, de estrutura especificada ou técnicas e formais. Os dois últimos tipos constituem variações gradativas das linguagens artificiais da ciência. A linguagem natural pode ser caracterizada como o processo de enunciação efetuado na comunicação humana, através de componentes sígnicos que apresentam imprecisões significativas, multiplicidade de regras de formação e carência, na maioria dos casos, de uma transmissão economicamente organizada, onde a produção de seus sentidos possui um alto grau de dependência do contexto comunicacional que os produz (27). A linguagem técnica ou de estrutura específica empregada para a construção de linguagens especializadas, que requerem precisão lógica, economia expressiva e formulação de enunciados que possam ser aceitos como proposições, são, ainda linguagens nas quais o sistema de evocações ideológicas e cargas emotivas fica excluído.”  (sem grifos no original)
Nessa postura, o profissional do direito enfrentará o paradoxo da linguagem nos instrumentos de contratos, devendo dosá-la na medida em que se contemple em seu bojo parte da linguagem natural do meio comunicacional para quem ou aonde se elabora o pacto. No contraponto, não poderá deixar de empregar a linguagem técnica necessária para que no tocante a grafia seja permitida a sua inserção no contexto jurídico dos contratos, e assim se qualificar em não ser apenas um papel escrito sem a mínima técnica aplicável à relação intersubjetiva por ele criada e disciplinada, ganhando juridicidade.

2. A Estrutura Formal Básica do Instrumento
No art. 12 do Decreto 59.566/66 encontra-se delineado o formato do contrato, sugerindo ou determinando o conteúdo das principais cláusulas.  A adoção dessa providência possibilita a visibilidade, a validade e eficácia do negócio entre as partes, bem como perante terceiros, sem necessidade de previamente dirimir dúvidas e assim evitando conflitos no decorrer de sua vigência, que por vezes poderá ter o seu objeto de longa execução.
Na verdade, se a legislação agrária não permitisse a possibilidade dos contratos poderem ser elaborados de modo verbal, diríamos que essas cláusulas seriam chamadas de essenciais ou necessárias, uma vez que dão a feição ao negócio, definindo o objeto, sua modalidade de execução seu valor ou percentual, prazo etc. Vejamos:
“Art 12. Os contratos escritos deverão conter as seguintes indicações:
        I - Lugar e data da assinatura do contrato;
        II - Nome completo e endereço dos contratantes;
        III - Características do arrendador ou do parceiro-outorgante (espécie, capital registrado e data da constituição, se pessoa jurídica, e, tipo e número de registro do documento de identidade, nacionalidade e estado civil, se pessoa física e sua qualidade (proprietário, usufrutuário, usuário ou possuidor);
        IV - característica do arrendatário ou do parceiro-outorgado (pessoa física ou conjunto família);
        V - objeto do contrato (arrendamento ou parceria), tipo de atividade de exploração e destinação do imóvel ou dos bens;
        VI - Identificação do imóvel e número do seu registro no Cadastro de imóveis rurais do IBRA (constante do Recibo de Entrega da Declaração, do Certificado de Cadastro e do Recibo do Imposto Territorial Rural).
        VII - Descrição da gleba (localização no imóvel, limites e confrontações e área em hectares e fração), enumeração das benfeitorias (inclusive edificações e instalações), dos equipamentos especiais, dos veículos, máquinas, implementos e animais de trabalho e, ainda, dos demais bens e ou facilidades com que concorre o arrendador ou o parceiro-outorgante;
        VIII - Prazo de duração, preço do arrendamento ou condições de partilha dos frutos, produtos ou lucros havidos, com expressa menção dos modos, formas e épocas desse pagamento ou partilha;
        IX - Cláusulas obrigatórias com as condições enumeradas no art. 13 do presente Regulamento, nos arts. 93 a 96 do Estatuto da Terra e no art. 13 da Lei 4.947-66;
        X - foro do contrato;
        XI - assinatura dos contratantes ou de pessoa a seu rogo e de 4 (quatro) testemunhas idôneas, se analfabetos ou não poderem assinar.
        Parágrafo único. As partes poderão ajustar outras estipulações que julguem convenientes aos seus interesses, desde que não infrinjam o Estatuto da Terra, a Lei nº 4.947-66 e o presente Regulamento.”


3 - Cláusulas Obrigatórias

Por causa dos abusos e dos atentados contra a dignidade da pessoa humana, o ordenamento jurídico procurou rever a teoria geral dos contratos. Passou-se destarte ao domínio do direito público, certas condutas que até então eram de livre arbítrio das partes.
Por decorrência de inúmeras razões, entre elas os tratados, convenções internacionais etc, de modo que as Constituições mais recentes adotaram regras, tanto programáticas, bem como de auto-aplicação, gerais ou individuais, centradas na proteção da dignidade da pessoa humana. Certamente essa mudança de paradigmas causou reflexo no direito dos contratos. Agora o direito privado encontra-se mais humanizado, falando-se de uma despatrimonialização e de uma repersonalização do Direito Civil em prol do coletivo. O novo enfoque tem a preocupação direcionada na proteção da pessoa humana, em sua dignidade de vida, superando assim as questões de ordem patrimonial.
No direito pátrio é exemplo disso a Constituição Federal de 1988 que se apresenta com um forte cunho intervencionista nas relações intersubjetivas, atendendo o caráter social, publicizando as relações e resolução de conflitos, fazendo com que o próprio direito civil perdesse a sua essência patrimonial e individual. Basta a simples leitura do art. 421 do Novo Código Civil, onde relata: “art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. É só compulsar os direitos e garantias individuais fixados no art. 5º da Constituição Federal de 1988, bem como da função social da propriedade estabelecido no art. 5º, XXIII e art. 186 da mesma Constituição, para se chegar a essa conclusão no sentido de profunda mudança de pensamento filosófico.
Portanto, a Constituição Federal de 1988 recepcionou na íntegra o Estatuto da Terra e seu Regulamento, cujas essências daquela e deste se completam. De modo que podemos dizer que nos “Contratos Agrários”, de fato ocorreu uma verdadeira publicização daquilo que até então era de caráter privado, de modo que a relação individual não poderá conflitar com os interesses coletivos nem onerar excessivamente as partes, especialmente o contratado-outorgado, em regra, economicamente mais frágil.

É com essa carga valorativa social que nos permite afirmar que as Cláusulas obrigatórias se incluem no texto do contrato, ainda que ali não estejam transcritas, posto que assim estão implicitamente, como direito das partes irrenunciáveis. Trata-se do conteúdo determinado no art. 13 do Decreto 59.566/66, que assim dispõe:

“Art 13. Nos contratos agrários, qualquer que seja a sua forma, contarão obrigatoriamente, clausulas que assegurem a conservação dos recursos naturais e a proteção social e econômica dos arrendatários e dos parceiros-outorgados a saber (Art. 13, incisos III e V da Lei nº 4.947-66);
        I - Proibição de renúncia dos direitos ou vantagens estabelecidas em Leis ou Regulamentos, por parte dos arrendatários e parceiros-outorgados (art.13, inciso IV da Lei número 4.947-66);en
        II - Observância das seguintes normas, visando a conservação dos recursos naturais:
        a) prazos mínimos, na forma da alínea " b ", do inciso XI, do art. 95 e da alínea " b ", do inciso V, do art. 96 do Estatuto da Terra:
        - de 3 (três), anos nos casos de arrendamento em que ocorra atividade de exploração de lavoura temporária e ou de pecuária de pequeno e médio porte; ou em todos os casos de parceria;
        - de 5 (cinco), anos nos casos de arrendamento em que ocorra atividade de exploração de lavoura permanente e ou de pecuária de grande porte para cria, recria, engorda ou extração de matérias primas de origem animal;
        - de 7 (sete), anos nos casos em que ocorra atividade de exploração florestal;
        b) observância, quando couberem, das normas estabelecidas pela Lei número 4.771, de 15 de setembro de 1965, Código Florestal, e de seu Regulamento constante do Decreto 58.016 de 18 de março de 1966;
        c) observância de práticas agrícolas admitidas para os vários tipos de exploração intensiva e extensiva para as diversas zonas típicas do país, fixados nos Decretos número 55.891, de 31 de março de 1965 e 56.792 de 26 de agosto de 1965.
        III - Fixação, em quantia certa, do preço do arrendamento, a ser pago em dinheiro ou no seu equivalente em frutos ou produtos, na forma do art. 95, inciso XII, do Estatuto da Terra e do art. 17 deste Regulamento, e das condições de partilha dos frutos, produtos ou lucros havidos na parceria, conforme preceitua o art.96 do Estatuto da Terra e o art. 39 deste Regulamento.
        IV - Bases para as renovações convencionadas seguido o disposto no artigo 95, incisos IV e V do Estatuto da Terra e art. 22 deste Regulamento.
        V - Causas de extinção e rescisão, de acordo com o determinado nos artigos 26 a 34 deste Regulamento;
        VI - Direito e formas de indenização quanto às benfeitorias realizadas, ajustadas no contrato de arrendamento; e, direitos e obrigações quanto às benfeitorias realizadas, com consentimento do parceiro-outorgante, e quanto aos danos substanciais causados pelo parceiro-outorgado por práticas predatórias na área de exploração ou nas benfeitorias, instalações e equipamentos especiais, veículos, máquinas, implementos ou ferramentas a ele cedidos (art. 95, inciso XI, letra " c " e art.96, inciso V, letra " e " do Estatuto da Terra);
        VII - observância das seguintes normas, visando à proteção social e econômica dos arrendatários e parceiros-outorgados (art.13, inciso V, da Lei nº 4.974-66):
        a) concordância do arrendador ou do parceiro-outorgante, à solicitação de crédito rural feita pelos arrendatários ou parceiros-outorgados (artigo 13, inciso V da Lei nº 4.947-66);
        b) cumprimento das proibições fixadas no art. 93 do Estatuto da Terra, a saber:
        - prestação do serviço gratuito pelo arrendatário ou parceiro-outorgado;
        - exclusividade da venda dos frutos ou produtos ao arrendador ou ao parceiro-outorgante;
        - obrigatoriedade do beneficiamento da produção em estabelecimento determinado pelo arrendador ou pelo parceiro-outorgante:
        - obrigatoriedade da aquisição de gêneros e utilidades em armazéns ou barracões determinados pelo arrendador ou pelo parceiro-outorgante;
        - aceitação pelo parceiro-outorgado, do pagamento de sua parte em ordens, vales, borós, ou qualquer outra forma regional substitutiva da moeda;
        c) direito e oportunidade de dispor dos frutos ou produtos repartidos da seguinte forma (art.96,inciso V, letra " f " do Estatuto da Terra):
        - nenhuma das partes poderá dispor dos frutos ou dos frutos ou produtos havidos antes de efetuada a partilha, devendo o parceiro-outorgado avisar o parceiro-outorgante, com a necessária antecedência, da data em que iniciará a colheita ou repartição dos produtos pecuários;
        - ao parceiro-outorgado será garantido o direito de dispor livremente dos frutos e produtos que lhe cabem por força do contrato;
        - em nenhum caso será dado em pagamento ao credor do cedente ou do parceiro-outorgado, o produto da parceria, antes de efetuada a partilha.”

Bem se observa o caráter jus supra jura (o direito sobre o direito), descrito no dispositivo, isto é, que são regras inibidoras da liberdade individual que antes era um direito da pessoa capaz de contratar, bem como de usar, gozar e dispor do seu bem do modo que lhe aprouvesse. Portanto, a regra veio ao mundo jurídico para que possa haver o equilíbrio entre as partes. No dizer de Fernando Pereira Sodero[2] em sua obra Direito Agrário e Reforma Agrária, sintetiza: “Em resumo: equilíbrio entre as partes, em lugar da luta de classes ou antagonismos ditados pelo poder econômico.”. É com esse fim que a legislação deverá ser aplicada tendo como conseqüência o interesse social.

É bem verdade que em certos momentos da legislação agrária se repetem artigos, parágrafos ou incisos desnecessariamente com determinações que já foram objeto de regramento. Também se nota omissão no que se refere a aplicação de suas regras sobre as modalidades, ora se referindo a parceria, outra ao arrendamento. Contudo, não percamos de vista que as cláusulas obrigatórias farão parte dos contratos agrários ainda que não estejam escritas, por se constituírem em verdadeiras garantias, ou privilégios irrenunciáveis, dando-se a essas determinações imperativas o caráter de ordem pública, de obediência obrigatória.





[1]              WARAT, Luis A., ROCHA, Leonel S. e CITTADINO,  Gisele.  O direito e sua linguagem.  2ª versão,  Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1984, p. 52.
[2]              Sodero, Fernando Pereira. Direito Agrário e Reforma Agrária. 2ª ed., Florianópolis: OAB/SC Editora. 2006, p. 134.

SINOPSE - II

Contratos Agrários - Conceito Requisitos e Interpretação

1. Conceito geral – conceito tradicional – adquirir, resguardar, transferir, modificar, conservar ou extinguir direitos.
1.2. Conceito doutrinário – obedecem a normas obrigatórias e imperativas tendo em vista o interesse coletivo.
1.3 Conceito de Arrendatário e Parceiro – trabalhadores rurais que cultivam ou produzem na terra desprovidos do animus domini.
2. Requisitos de validade do Contrato – agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável forma não contrária à legislação, expresso ou verbal.
2.1 Requisitos básicos – art. 104 CC.
2.1 Princípios básicos – autonomia da vontade ou liberdade das partes, função social do contrato, conservação da guarda da probidade e boa-fé durante a execução (arts. 107-114; 421 e 422 CC), supremacia da ordem pública, obrigatoriedade do pactuado - pacta sunt servanda, porém se não houver alteração – rebus sic stantibus (arts. 317, 478 a 480 CC).
2.2. Princípios específicos – art. 95 e 96 do ET - por muitos, entendido apenas como regras imperativas, dando organicidade à matéria, derivando o Decreto 59.566/66 sendo diretrizes dos contratos.
2.3 Interpretação do contrato e aplicação das regras jurídicas – conflito entre liberdade das partes e prescrições de ordem pública.
2.4 comandos normativos e classificação das leis - função: ordenar, proibir, permitir, punir. Classificação em prescrições imperativas, proibitivas, permissivas e punitivas.
2.5 Predomínio da função imperativa das normas reguladoras dos contratos agrários.
2.6 Processos ou métodos de interpretação da norma – os manuais indicam - gramatical, lógico, sistemático, teleológico, histórico etc. quanto aos contratos verbais deve-se tomar em conta os fatores sociais. Nos contratos formais leva-se em consideração o critério da hierarquia, da especialidade e o cronológico das normas incidentes.
2.7 Dualismo “Direito e Estado” e a legitimidade da Vinculação dos Contratos Agrários ao Direito Positivo – o direito limita o Estado e o Estado produz o Direito – Direito positivo é legitimo no Estado Democrático de Direito.
2.8 As principais colocações teóricas na matriz positivista – a segurança – Estado Democrático. Bóbio – vide citação neste capítulo.
2.9 submissão do Estado aos desígnios do direito – atividades típicas execução, legislação e justiça – o poder centrado no povo – auto-ordena – diretamente ou por meio de seus representantes fiduciários.
2.10 Os contratos agrários exaustivamente regrados – por normas obrigatórias e imperativas.

2.2 Princípios específicos - contratos agrários

2.2 Princípios específicos - Os arts. 95 e 96 do Estatuto da Terra impuseram como de caráter obrigatório os comandos descritos em seus incisos, denominando-os de princípios. Como princípios foram colocados para que fossem obedecidos na edição do regulamento. De fato deu organicidade ao tema, derivando o Decreto 59.566/66. Contudo ao se referir às relações intersubjetivas, como está posto nos artigos supra, na verdade devem ser reconhecidos como diretrizes fundamentais na elaboração e execução dos contratos agrários, uma vez que deles não há como se extrair tão-somente abstrações gerais, como ocorre na maioria dos princípios norteadores do direito, sejam eles gerais ou específicos. É por isso que não podemos desprezar outras posições que os consideram apenas como regras materiais ou substantivas, imperativas/cogentes, de aplicação obrigatórias.

2.3 Relativamente à interpretação dos contratos agrários e aplicação das regras jurídicas de plano cabe notar a dificuldade quando estes princípios de ordem privada tais como a vontade ou liberdade das partes, entram em aparente conflito, afrontando prescrições de ordem pública, como as leis agrárias especiais, que nesta obra investigamos.

No campo da hermenêutica o assunto tem dado trabalho aos pesquisadores. Carlos Maximiliano[1] assim conduz o tema, vejamos: “A distinção entre prescrições de ordem pública e de ordem privada consiste no seguinte: entre as primeiras o interesse da sociedade coletivamente considerada sobreleva a tudo, a tutela do mesmo constitui o fim principal do preceito obrigatório; é evidente que apenas de modo indireto a norma aproveita aos cidadãos isolados, porque se inspira antes no bem da comunidade do que no indivíduo; e quando o preceito é de ordem privada sucede o contrário: só indiretamente serve o interesse público, à sociedade considerada em seu conjunto; a proteção do direito do indivíduo constitui o objetivo primordial. Os limites de uma e outra espécie têm algo de impreciso.”.

2.4 Desse modo e antes de tudo, devemos sempre ter em mente os comandos normativos que já conhecemos desde os tempos de iniciação acadêmica. Falamos, é claro, daqueles que basicamente inserem no texto legal a função de: ordenar, proibir, permitir, punir, surgindo daí a tradicional classificação das leis em imperativas, proibitivas, permissivas e punitivas.

 2.5 As normas reguladoras dos contratos agrários devem ser atentamente examinadas, uma vez que podem se revestir de mais que um dos comandos acima, predominando a função imperativa. É com esse cuidado que devemos operar os instrumentos contratuais no mundo fático das relações agrárias.

2.6 No tocante aos processos ou métodos de interpretação da lei, propriamente dito, relativo ao sentido e alcance da norma onde temos como exemplo o método gramatical, lógico, sistemático, teleológico, histórico etc., em parte abstraímos deste estudo por entendermos não ser o objeto principal. Nesse campo existe uma infinidade de manuais que poderão ser consultados com facilidade. Contudo não podemos afastar a assertiva de que os contratos agrários que não atenderem o padrão normativo devem ser interpretados levando-se em consideração os fatores sociais que circundam a vida campesina de onde derivou o pacto, como modalidade de interpretação plenamente aceita.

Por outro lado, nos contratos de relações formais, também não poderíamos deixar de colocar, como dito anteriormente, a possibilidade da existência de conflito aparente de normas incidentes sobre determinadas questões que se tornam ou se tornaram controvertidas entre as partes. Nesse passo temos matéria exaustivamente abordada na obra Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bóbbio[2], quando em determinado momento de seu estudo sugere regras para a solução de antinomias: “As regras fundamentais para a solução das antinomias são três: a) critério cronológico; b) o critério hierárquico; o critério da especialidade”. 

De posse dessa assertiva, o operador do direito ao se defrontar com mais de uma norma para a solução do caso, certamente irá submetê-las as regras supra, caso haja aparente conflito.

Ainda no dizer de Bobbio[3] 
"Todas as fases de um ordenamento são, ao mesmo tempo, executivas e produtivas. (...) O grau mais alto é constituído pela norma fundamental: essa é somente produtiva e não executiva. (...) Esse duplo processo ascendente e descendente pode ser esclarecido também em duas outras noções características da linguagem jurídica: poder e dever. Enquanto a produção jurídica é a expressão de um poder (originário ou derivado), a execução revela o cumprimento de um dever."

Com esse ensinamento o pensador colocou de forma clara o critério da hierarquia da norma, especialmente a questão da constitucionalidade freqüentemente levada ao judiciário, onde a norma ordinária poderá conflitar com a Constituição Federal, provocando o conflito hierárquico.

Tal preocupação tem razão de ser, ocorre que, compulsando a Constituição Federal em seu Capítulo III que dispõe “Da Política Agrária e Fundiária e Da Reforma Agrária”, observamos que o Estatuto da Terra foi recepcionado formal e materialmente como lei ordinária. É correto afirmar isso, uma vez que a única ordenação formal de produção legislativa com quorum qualificado determinada pelo Legislador Constituinte, refere-se à edição de Lei Complementar e diz respeito apenas ao processo judicial de desapropriação, § 3º do art. 186 da Constituição Federal de 1988. Em relação aos demais temas agrários a lei ordinária atende ao comando Constitucional para regulamentar a Lei Maior.  Portanto, no que concerne ao critério da hierarquia das normas, o Estatuto da Terra está caracterizado como lei ordinária, porém especializado em relação às matérias autorizadas ou não proibidas pela Constituição Federal. Essa visão se faz necessária, uma vez que, em certos assuntos, leis ordinárias anteriores ao texto Constitucional adquiriram com sua promulgação o status de lei complementar, já em relação ao Estatuto da Terra isso não se faz necessário porque a CRFB assim não exigiu.


 Dando prosseguimento ao tema relacionado à hierarquia das leis, sabemos que quando da ocorrência de antinomia entre dois dispositivos, em tese de mesma hierarquia, outra solução poderá ser adotada, ou seja, a que consiste na aplicação do Princípio da Especialidade. A ilustre jurista MARIA HELENA DINIZ[4], ensina nos seus estudos referentes aos critérios para a solução dos conflitos de normas (Obra: Conflito de Normas, pág. 33, 5. ed - São Paulo: Saraiva, 2003), "verbis":
" Se, como nos ensina Hans Kelsen, para haver conflito normativo as duas normas devem ser válidas, pois se uma delas não for, não haverá qualquer antinomia, já que uma das normas não existiria juridicamente."
Diz ainda a ilustre doutrinadora:
            " C) O de especialidade (lex specialis derogat legi generali), que visa a consideração da matéria normada, com o recurso aos meios interpretativos. Entre a lex specialis e a lex generalis há um quid specie ou uma gens au speci. Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes "

Continuando com Maria Helena Diniz na sua já citada obra, agora em pág 50, no título Antinomias de segundo grau e os metacritérios para a sua resolução, assim propõe:
            " Ter-se – á antinomia de antinomias, ou seja, antinomia de segundo grau, quando houver conflito entre os critérios:
            ................
            b) especialidade e cronológico, se houver uma norma anteriormente especial conflitante com uma posterior-geral; seria a primeira preferida pelo critério de especialidade e a segunda, pelo critério cronológico,.........."


2.7 - Dualismo “Direito e Estado” e a legitimidade da vinculação dos Contratos Agrários ao Direito Positivo
Ainda que não estejamos apregoando nem desmerecendo as regras de direito formal e material, é salutar incutir que o direito no Juspositivismo também consiste na limitação do Estado pelo Direito, e tem a lei como seu ápice. É com esse pressuposto que as relações contratuais no direito agrário deverão ser tratadas, uma vez que são densamente regulamentados pelas regras positivas inseridas no sistema jurídico que por sua vez decorre do atual Estado Democrático de Direito, situação que o Brasil procura preservar como conquista da nação.
2.8 Assim, para que tenhamos compreensão do assunto (contratos agrários) que se encontra cercado por um conjunto de normas, o Estado deve ser conhecido posto ser o principal agente produtor delas. As buscas da definição do Estado e sua relação com o Direito são incessantes. Vale ressaltar as principais colocações teóricas seguidas pelos pensadores.
A respeito do que seja Estado e Direito acentua BASTOS[5] com síntese e maestria: “O Estado e o Direito. O Direito precede ao Estado, doutrina o jusnaturalismo; Direito e Estado se confundem, assevera o positivismo jurídico.”
Consoante Afonso Arinos[6] :
 "O Jusnaturalismo aceita a supremacia básica do direito sobre o Estado, na questão dos direitos do homem. O juspositivista afirma a supremacia do Estado sobre o direito, (...) Não podemos deixar de observar, no entanto, que a teoria da autolimitação do Estado, exatamente por não reconhecer a precedência, sobre seu poder, de algumas condições específicas da personalidade humana, oferece menos segurança de estabilidade das liberdades individuais do que as teorias jurídicas ou metajurídicas, que afirmam a limitação do Estado pelo Direito."

2.9 A preocupação deste relato doutrinário reside em justificar ou submeter o Estado aos desígnios do direito, objetivando a segurança e estabilidade das liberdades individuais e coletivas através do direito legislado, culminando, por ato decorrente, em justificar também as regras incidentes sobre os Contratos Agrários.
Por isso questionamos: qual o Estado que melhor atenderia esses ideais?
Sem dúvidas recorre-se aos ensinamentos de BOBBIO[7] em sua definição procedimental de Democracia, que segundo ele, é possível relatar que definiu o estado democrático como o conjunto de regras de procedimentos para a formação de decisões coletivas em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados - são regras jurídicas. 
Quanto ao direito e poder, diz ele que só o direito pode limitar o poder e só o poder pode criar o direito. Então quanto às regras de procedimentos pode se afirmar à assertiva de que só o autorizado pode tomar as decisões coletivas. E essa autorização é decorrente do próprio direito.
Segundo BOBBIO[8] : "O modelo ideal entre direito e poder é o Estado democrático de direito, isto é, o Estado no qual não há poder que não esteja submetido a normas que derivem do consenso ativo dos cidadãos".
Tem-se aqui que um Estado de Direito com a pretensão de dar segurança ao cidadão, deve ser democrático quanto à sua forma de governo no que se refere às atividades típicas de Estado, isso é, a execução, legislação e justiça, tendo como premissa o poder centrado no povo, este como detentor primário e originário do poder, onde se auto-ordena na produção do sistema jurídico. É o povo fazendo as regras jurídicas diretamente ou por meio de seus representantes periódicos, embora estes sejam meros fiduciários.

Retomando os dizeres de BOBBIO[9] pode se concluir que o mandatário é um fiduciário e não um delegado do eleitor, pois representam os interesses gerais, políticos.

2.10 Os contratos agrários são exaustivamente regrados por dispositivos legais, de modo que ao operador do direito resta o dever de estar sempre atento, ao iniciar seu contacto com o tema, à visão positivista do direito no sentido de obedecer em especial à hierarquia das normas, partindo da Constituição Federal até chegar ao instrumento individual que é o contrato, para que as normas de ordem pública, como no caso a Lei 4.504/66 e Decreto 59.566/66, não sejam renegadas.
Para KELSEN[10], um expoente do positivismo jurídico, a Constituição efetivamente erradia uma unidade na pluralidade das demais normas: "Como a norma fundamental é o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem jurídica, ela constitui a unidade na pluralidade destas normas.".
Disse Kelsen que a norma é desprovida de valor, distinguindo o mundo do “ser” e “dever ser”, no mundo do ser estão os fatos com suas mais variadas conotações.
Nessa linha de pensamento podemos afirmar que as questões relativas aos “valores” devem ser apreciadas pelos legisladores na elaboração da norma e vistos com muita restrição pelos operadores do direito na execução da norma.
Por esse motivo o operador do direito deve ter em mente num primeiro momento a norma como padrão de conduta, uma vez que no mundo dos negócios os contratos agrários freqüentemente podem levar o profissional do direito ao senso comum (enquanto cotidiano dos leigos), elaborando contratos sem o cuidado mínimo necessário pelo simples apego ao caso ou paixão à causa (valores cultuados no meio social), em que pese à relevância dos fatores sociais nas relações do meio rural.
Os Contratos Agrários obedecem a normas obrigatórias e imperativas, tendo em vista o interesse coletivo, daí porque o interprete deve levar em conta os “fatores sociais” sempre que não for possível aplicar a norma ou quando ela apresentar lacunas que não possam dar solução adequada ao pacto. Jamais se esquecendo da função social da propriedade consagrada na Constituição Federal a partir de 05 de outubro de 1988.

 Resgatando Aristóteles, a Lei é a razão liberta da paixão.




[1]              Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito. RJ: Forense, 2003, p.176.
[2]              Norberto Bobbio. Teoria do Ordenamento jurídico. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 10ª Ed., 1997. p.92.
[3]           BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento  Jurídico, Editora UNB, 1997,p.51.

[4]           Conflito de Normas, pág. 33, 5. ed - São Paulo: Saraiva, 2003.
[5]              BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 8.
[6]              FRANCO, Afonso Arinos de Melo.  Direito Constitucional (teoria da Constituição; as Constituições do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p.27.

[7]              BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio;  tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.18-21.
[8]              Fonte: DIÁRIO CATARINENSE - domingo 04 de outubro de 1998, p.3.

[9]              BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio; tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986. p.46-47.

[10]       KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo,  Martins Fontes,  1987. p. 220.